A “MALDIÇÃO DE CANAÔ E O ABUSO DAS ESCRITURAS

A narrativa bíblica do dilúvio é sem dúvida uma das histórias mais cativantes da Bíblia (Gn 6-9). No final do relato, em 9,18-27, nos deparamos com um episódio muito intrigante. No v. 18, Noé, o grande herói diluviano, aparece ao lado de seus filhos: Sem, Cam e Jafé. Logo no início da narrativa algo inusitado acontece: dominado pelo vinho, Noé se despe e permanece assim no interior de sua tenda. Um de seus filhos, Cam, “vê” (ראה) a nudez de seu pai e adverte a seus dois irmãos que estão do lado de fora [1]. Em seguida os dois cobrem o corpo de Noé desviando os olhos de sua derme nua (9,22). Embora a razão não fique muito clara, a ação de Cam é considerada reprovável, por isso seu filho Canaã torna-se alvo de uma severa maldição: seus descendentes são condenados à escravidão sob a autoridade de seus irmãos, estando Sem – ancestral de Abraão, cf. Gn 11,10-26 – no topo da hierarquia (cf. Gn 9,27).

Mas o que este relato, escrito em forma poética, faz ali, no final do capítulo 9? O que ele pretende inculcar em seus leitores? Bem, não é muito difícil perceber que o relato tem a finalidade de expor as razões do “atual” estado das coisas, ou seja, pretende explicar e justificar a relação de servidão entre cananeus (descendentes de Canaã) e hebreus (descendentes de Sem) no Antigo Israel. Assim, diante da pergunta: “por que devemos considerar os antigos habitantes da terra como nossos servos?”, a resposta seria: “porque em um passado distante, Canaã, pai dos cananeus, foi amaldiçoado por Deus”. O Gênesis também explica porque as serpentes rastejam (3,14), a mulher sente dores de parto (3,16) e a terra não entrega facilmente o seu fruto (3,19) a partir de uma maldição ocorrida em um tempo distante.

Não é meu interesse aqui apresentar soluções teológicas capazes de explicar ações aparentemente duras (como a maldição de Canaã) ou aparentemente injustas da “didática divina” (veja Js 6,21 e 2Rs 2,24) – se é que posso chamar assim – no Antigo Testamento. Seja como for, à luz da ética e da teologia de Jesus não faz mais sentido, nos dias de hoje, justificar o sexismo, o racismo ou a xenobobia como resultado de uma maldição imposta por Deus [2]. Dentre as principais vítimas desse tipo de discurso, ao longo da história, encontram-se judeus, mulheres, árabes muçulmanos e negros africanos. Os malabarismos teológicos utilizados para encontrar no texto as bases para algum tipo de preconceito conhece uma longa trajetória.

Durante quase dois mil anos, boa parte dos teólogos cristãos justificaram o sofrimento dos judeus tomando como base algum texto das Escrituras. Suas raízes podem ser buscadas no século II, com Irineu, em sua obra “Contra as heresias” (Livro IV, 33.12). No século IV é repetida por Ambrósio em suas Epístolas (40,14). Durante toda a Idade Média o pensamento era basicamente o mesmo: judeus são um povo amaldiçoado e estão pagando pela crucificação de Cristo (muitos gostavam de citar Mt 27,25). Lutero, no século XVI manteve o velho e perverso antijudaísmo, visível, por exemplo, em seu texto “Os judeus e suas mentiras”, publicado em 1543. Não demorou e esse antijudaísmo se converteu em racismo, em antissemitismo.

As mulheres foram outras vítimas do abuso das Escrituras. Falando sobre o vestuário feminino (Livro I, 2), Tertuliano classifica a mulher como o “portão do diabo”, “a primeira desertora do direito divino” e a maior “culpada pela morte de Cristo na cruz”. De acordo com o Malleus Maleficarum (I, 6), manual de caça às bruxas escrito no final da Idade Média, a mulher está mais inclinada ao mal porque foi feita a partir da costela torta de Adão. Edir Macedo, em declaração tornada pública, disse que as mulheres não podem ter mais estudo que o marido [3]. Além das mulheres também podemos incluir os árabes, erroneamente vistos como “eternos inimigos do povo judeu”. Ovadia Yosef, proeminente judeu ultraortodoxo falecido em 2013, tratou os árabes como “malfeitores”, descendentes de Ismael, homem que Deus lamentou ter criado [4].

O principal alvo do mau uso das Escrituras, no entanto, foi o negro africano. Tentativas de estabelecer relação entre os negros e os descendentes malditos de um personagem bíblico – neste caso, Canaã – são antigas e perversas [5]. Em 2011, o deputado federal Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) a repetiu no Twitter, gerando indignação e diversas manifestações de repúdio [6]. De acordo com a rede de notícias UOL, o pastor também sugeriu que o pecado de Cam foi o homossexualismo, “sendo possivelmente o primeiro ato homossexual da história”, algo que afetaria diretamente os africanos com a maldição imposta por Deus [7].

Na segunda metade do século XX, na tentativa de combater o racismo, um grupo de pastores negros estadunidenses resolveu produzir o que mais tarde foi denominado “teologia negra” [8]. O grupo refletia sobre a perversidade que é o racismo e sobre como as Escrituras podem contribuir para combater este mal. Não raro são ouvidos gritos de protesto como “não precisamos de uma teologia negra, mas de uma teologia bíblica”. Como se o preconceito não merecesse uma abordagem bíblica. O método dogmático-dedutivo de fazer teologia, refletindo a partir do dogma, tem sua importância, mas a igreja também precisa refletir a partir da experiência concreta, dos problemas humanos, na tentativa de buscar soluções com a ajuda das Escrituras. Não será uma “teologia humanista”, mas uma teologia sensível aos problemas humanos.

Jones

Notas:

[[1]] Há quem especule que “ver a nudez” tenha o mesmo sentido de “descobrir” (גלה) a nudez tal como aparece no livro de Levítico (cf. 18,6), funcionando como eufemismo para “ter relações sexuais”. Assim, o pecado de Cam não seria a visualização da nudez de seu pai, mas a relação sexual ilícita.

[2] No Evangelho de João (9,2-3) Jesus se revela mais interessado em curar o cego de nascença do que em saber se sua deficiência era o resultado de alguma maldição lançada sobre seus ancestrais.

[3] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/09/24/interna-brasil,789307/bispo-edir-macedo-diz-que-mulher-nao-pode-ter-mais-estudo-que-o-marido.shtml. Acesso em 21/08/21.

[4] Disponível em: https://www.timesofisrael.com/5-of-ovadia-yosefs-most-controversial-quotations/. Acesso em: 20/08/22.

[5] Apresento aqui duas sugestões de leitura sobre o assunto: GOLDENBERG, David M. The curse of Ham: race and Slavery in Early judaism, christianity and islam. Princeton: Princeton University Press, 2013; HAYNES, Sthephen R. Noah’s curse: the biblical justification of American Slavery. Oxford: Oxfors University press, 2002.

[6] Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/03/deputado-ve-podridao-em-gays-e-diz-que-africanos-sao-amaldicoados.html. Acesso em 21/08/21.

[7] Disponível em : https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/03/31/deputado-federal-diz-no-twitter-que-africanos-descendem-de-ancestral-amaldicoado.htm>. Avesso em 21/08/21.

[8] O Comitê Nacional de Homens de Clérigos Negros comprou um anúncio de página inteira no The New York Times para publicar seu “Black Power Statement”, propondo uma abordagem mais agressiva para combater o racismo usando a Bíblia como inspiração. Disponível em: < https://episcopalarchives.org/church-awakens/files/original/58857a3c560f8a1779b7fb17fb4120c3.jpg>. Acesso em 21/08/21.