Como ler um texto bíblico a partir das questões presentes e urgentes de um determinado tempo? Esse é um grande questionamento, sobretudo porque antepõe duas visões de mundo: A de que as coisas são como são porque são naturais, porque Deus quis e quer assim. Outra, que diz que as coisas são como são porque são construídas e não naturais, não que sejam necessariamente a vontade de Deus.
O texto em questão é Efésios 5.23: “As mulheres estejam submissas ao seu marido”.
Aprendemos desde cedo que um dos princípios hermenêuticos fundamentais diz respeito à necessidade de se observar a estrutura do texto que se pretende interpretar dentro de sua moldura original: Contextos, Estrutura Linguística, Tempo Histórico, Cultura Predominante, uma vez definidos esses elementos, podemos então nos voltar à questão principal: O que devo ouvir, o que quero buscar, o que vou levar?
Engana-se quem imagina poder entender os tempos históricos como lineares. Perde quem não admite a necessidade de se adentrar – O máximo possível, nas geografias, antropologias e culturas (sim, tudo em Plural) que compõem a tecitura a partir da qual se pode enxergar as diversas imagens pretendidas pelos tecelões, com o cuidado que se exige das analogias, aquilo que contém o sentido primeiro – não único e nem unívoco de um determinado autor com o seu texto.
O texto que causa horror na sociedade do presente século, sobretudo em parte da sociedade não comprometida religiosa ou dogmaticamente com a Bíblia, é atribuído tradicionalmente ao apóstolo Paulo, entretanto, esse não é assunto pacífico. Boa parte dos exegetas preferem colocá-lo num outro conjunto, a saber: Os Escritos Paulinistas – textos em que há uma séria dúvida quanto à autoria de Paulo. Mas isso não importa agora.
Num primeiro exercício hermenêutico e exegético, me proponho a não examinar o significado original das palavras envolvidas para expressar no grego o sentido de submissão, usado como mandamento para todos os que fazem parte da Igreja, versículo 21, para a mulher em relação ao marido e mais à frente, no versículo 23, o significado de cabeça como uma referência de que o homem é o cabeça da mulher quanto Cristo o é em relação à Igreja. Isso porque já é pacífico que os sentidos etimológicos vão caminhar numa única direção: Diga-se de passagem, não é de posse, controle ou subsunção do outro. Cristo nunca foi dono da Igreja. Se essa é régua a partir do que deve ser medido em relação ao relacionamento marido esposa e entre pessoas que fazem parte da Igreja, já ponho isso como resolvido.
O texto de Efésios precisa ser lido em Bloco, à ideia de antepor o modelo cristão de relação e comportamento à comunidade em Éfeso (embora sem menção clara no endereçamento) que ainda espelhava, por ser domínio romano, ao jeito romano de ser. E aqui, preciso apontar um dado imagético importante: A “Casa Romana” tinha suas portas sempre abertas, era portanto. em virtude de ser um espaço em que todos moravam (senhores e escravos), uma maneira de se conhecer na intimidade a relação entre discurso e prática. Aqui, o desafio do autor é com um comportamento alternativo, fruto de uma nova cidadania: Relações afetivas a partir do modelo de um novo Senhorio – O de Cristo.
Voltando ao recorte proposto: “As mulheres estejam submissas ao seu marido”. Provavelmente a ideia aqui presente seja a de viver interdependente, a ênfase de mandar e obedecer é de gênero, não prioritariamente era o interesse do autor. As relações no casamento devem ser feitas por escolha. O conceito de autonomia como a possibilidade de fazer escolhas livres, não de agir solitariamente.
O autor está preocupado com um tipo de comunidade que se diferencie radicalmente dos modelos vigentes, mas não por fazerem coisas diferentes, mas por fazerem as mesmas coisas de maneira diferente. Isso não significa acomodação, mas para sua época era um jeito revolucionário: Não tenho problemas em obedecer a um comando porque sei que o comando será fruto de uma decisão comum, não despótica.
A mulher aqui é autônoma não autômata, não um robô, um objeto, uma marionete. Seguindo Daniel Pink (Motivação 3.0) “O contrário de autonomia é controle. E, como estão em polos diferentes da bússola comportamental, apontam para destinos diferentes. O controle leva à obediência; a autonomia leva ao engajamento”.
O ponto de vista portanto de Efésios, no recorte específico do texto, deve ser lido como uma proposta de equivalência humana: Homens e mulheres são iguais, tem seus desejos, sua individualidade, seu lugar no mundo. Qualquer sociedade entre ambos, deve se dar no limite da igualdade, do respeito, do cuidado, do convencimento, jamais da oposição.
Uipirangi Câmara