Por Pr. Sérgio Dusilek
Por vezes a religião protagoniza cenas inusitadas. Excentricidades, embora não sejam desejáveis, não são incomuns à esfera religiosa. Não por outro motivo quando a excentricidade ganha publicidade, o desconforto se torna abrangente.
Recentemente na Índia, religiosos foram instados a passarem esterco bovino no corpo, pois seria uma forma de prevenção ao contágio da Covid-19. Excetuando-se o fato de que o mau cheiro pode criar o distanciamento social, o que se aplica aos asseados, não há qualquer razoabilidade em tal proposição. De fato, em momentos de perplexidade social diante de situações-limite (Karl Jaspers) como as muitas mortes oriundas de uma pandemia, a conexão com o religioso se dá por duas vias: a primeira, pelo purgamento, pela consciência má que se apresenta culpada e que numa tentativa de explicação, oferece a noção karmática como sentido para o sofrimento impingido pela morte e pelo medo dela. O caminho aqui é a busca do agrado, da reconciliação com o divino, que faria com que a peste por ele outrora iniciada (nesta compreensão), pudesse vir a termo; a segunda pela abertura para o irracional, elemento presente na experiência religiosa como bem assinalou Rudolf Otto, e que em nome desse aspecto se aceita e se entulha um pouco de tudo. Até rituais que flertam com o absurdo, categoria por sinal bem diferente e distante do irracional, são aceitos, normalizados em nome do “mistério” e viabilizado pelo medo.
O que nos interessa nesse caso específico, ainda que possamos criticar o absurdo na religião, é seu aspecto público e sua relação com o ideário fundamentalista. O fundamentalismo sofre desse mal: ele tem vocação para o espaço público; somente se realiza no público, nunca se contenta com o privado. Seu objetivo é arrebanhar, influenciar, ganhar adeptos e, porque não dizer, de impor um comportamento aos outros. Paradoxalmente, o mesmo fundamentalista que apregoa a liberdade não como um bem inalienável do ser humano (John Locke), mas como um bem maior que a vida (a liberdade como ente(!!!???)), uma vez investido de poder, impõe seu querer, seu crer e sua agenda para todos os demais.
A prática fundamentalista não é a do quarto. Ela se efetiva na praça, depende da praça para viver. Ao se caminhar para a praça ela sai do campo da espiritualidade e vai para o campo da polis, da política. Se fosse a execução de um número, de um rito fechado em si, não teria maiores problemas. No entanto, o fundamentalismo, com sua verve negacionista e com sua extensa colcha que cobre e encobre absurdos, tudo em nome de Deus, acaba colocando a vida dos seus fiéis e daqueles que não possuem o mesmo credo, a mesma fé, em risco. O fundamentalismo não assassina só a vitalidade da fé em nome da preservação da fé; não só constrói mausoléus sobre os espaços religiosos; ele mata.
Perceba que se um grupo hinduísta absurdamente chegou à conclusão que esterco bovino é mais forte e eficiente que o campo de força de Wakanda, e que cada um ministrasse esse placebo espiritual em sua individualidade, seria lamentável, mas menos danoso. Ocorre que a exposição pública de um absurdo coloca em risco outros, ao oferecer uma certa blindagem espiritual contra o vírus, seguindo a lógica de que o invisível se combate com o invisível (ao mesmo tempo que se nega a diferença de dimensões envolvidas aqui).
Ocorre que esse caso do hinduísmo não está restrito àquela religião. No meio do movimento evangélico brasileiro há outros exemplos, não tão mal cheirosos é verdade, de absurdos em nome da fé. Não são nem um, nem dois que defendem a tese que Deus blinda os fiéis e que o Espírito Santo não permitirá que o vírus toque em alguém que pertence a Ele. De igual modo não são poucos os que em nome da garantia do céu, desprezam os cuidados com esta vida, faltando com a mordomia desse bem que Deus nos confiou. Tais pessoas, adotam uma postura fatalista para o vírus, mas não para o tiroteio. Os mesmos que dizem que se pegar o vírus é porque Deus o quis, são os mesmos que em pleno tiroteio se escondem para que a bala não os ache (e fazem muito bem nesse sentido). Por esta razão, sujeitam-se e também desconsideram o cuidado com seu semelhante, fomentando todo tipo de contágio.
O que mostramos até agora? O modo como a religião não deve se relacionar com a política, instrumentalizando o espaço público da polis para imposição de seus valores e de uma cosmovisão fundamentalista, cujo termo, por sinal, não parece ser bem aplicado. Afinal nada no fundamentalismo é cósmico, a não ser seu desejo pelo poder.
A religião não deve se furtar ao espaço público. É nele que somos instados a dar bom testemunho. No entanto é também nele que devemos exercer a voz profética, denunciar desmandos, desvios, conluios, injustiças e anunciar a esperança que vem do Senhor Jesus. Nunca uma relação de subserviência, de apoio; sempre uma relação crítica, exercendo o papel de consciência do Estado. Logicamente que jamais exercendo qualquer papel cerceador, inquisitivo e muito menos impositivo sobre outrem.
A religião não deve ter quarto no palácio; também não pode negar sua existência. Ela precisa fazer ouvir a voz da justiça nos cômodos do palácio. Uma proximidade que não se traduza em conivência.
Termino dizendo que o banho de esterco é um símbolo, uma figura potente do que o fundamentalismo produz na religião. Não só o patente absurdo, mas sobretudo a repulsa que ele causa aos de fora. Já não bastasse o próprio excremento que por vezes a religião enseja a produção, ela termina por se esfregar naquilo que vem do campo e do envolvimento acrítico com a política. Sem a higienização do autoexame, a religião especialmente de matriz cristã, esfrega em seu corpo o esterco que lhe é alheio, por ser bovino e não ovino. Ao fazê-lo, a religião como que infectada pelo Corona vírus, sintomaticamente demonstra sua anosmia. E esquece o motivo de sua crescente rejeição, ao trazer para o Corpo o que deveria ser mantido como adubo para a terra.
Pr. Sérgio Dusilek, faz uma excelente narrativa que confronta o realismo e o terrorismo utilizados como técnicas fundamentalistas utilizadas em diversos segmentos religiosos.
Seu texto contribui sobremaneira para nos ajudar a combater o discurso diário e presente na boca de centenas de pessoas que conversamos de que as pessoas estão morrendo porque chegou a hora e não cai uma folha da arvore sem ser a vontade de Deus. Continuam se negando a tomar vacinas e usar mascaras e evitar aglomerações.
Este negacionismo da ciência e do amor a si e ao próximo FEDE