INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NA IGREJA – UM BREVÍSSIMO ESBOÇO

A intolerância religiosa que pode ser observada hoje nas igrejas não existiu desde sempre. E ainda hoje nem todos os cristãos podem ser acusados justamente de intolerância. Mas então como ela surgiu? Eis um brevíssimo esboço histórico das suas raízes teológicas.
Antes de existir uma igreja institucionalizada, Cristo deixou os seus ensinos e a sua vida como exemplo a ser seguido. Uma das coisas que ele ensinou e praticou foi a tolerância. Quando os seus intolerantes discípulos queriam literalmente botar fogo naqueles que seguiam a Jesus de outro modo, ele apenas disse: “quem não é contra mim, é por mim”. Além de jamais ter estimulado a censura, a discriminação e a violência contra quem pensava e agia diferente, foi pródigo em dialogar com todos as pessoas independentemente de suas teologias e práticas religiosas. O apóstolo Paulo, um judeu intolerante antes de sua conversão ao evangelho, seguiu o exemplo do mestre e escreveu: “se alguém pensa diferente, Deus esclarecerá”. Desde o alvorecer da Igreja houve a coexistência de grupos diferentes e, por isso, o exercício da tolerância sempre foi uma necessidade. Os recém-convertidos se dividiam em diversas tendências: os legalistas, os helenistas, os ex-seguidores de João Batista, etc. A partir do segundo século, os chamados “Pais da Igreja” (Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Justino Mártir, Irineu de Lion, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, os pais capadócios, etc) propuseram teologias para responder as questões mais controversas. Os debates foram acalorados, mas ninguém podia bater o martelo. Até hoje um destes mesmos teólogos pode ser lembrado tanto para reforçar quanto para refutar teses. Mas quando saber quem estava certo se tornou uma questão de poder, a tolerância perdeu terreno. Sobre isto escreveu o historiador Roger Olson:
“Em certas ocasiões, a grande controvérsia sobre a pessoa de Jesus (…) política e teologia se misturaram de um forma nunca vista nem sequer imaginada”. Entre os séculos IV e V, a disputa teológica entre Oriente e Ocidente se acirra, bem como a cobiça por espaços de influência, sobretudo o Bispado de Constantinopla, a nova capital do Império Romano. A esta altura, sob o governo de Constantino, o cristianismo era uma religião não apenas tolerada, mas com lugar institucional garantido na corte romana. Quando a sua presença se tornou hegemônica, o Imperador Teodósio I fez dela a religião oficial do Império (395 E.C.). Já não era mais possível tolerar as diferenças: concílios foram convocados para que, finalmente, as igrejas chegassem a um pensamento único. Como isto nunca aconteceu, isto teve que ser imposto por alguém poderoso o suficiente para fazê-lo: o imperador. Em 381, por exemplo, Teodósio I assinou um decreto contra os ensinos do Bispo Apolinário e seus seguidores: a heresia deixa de ser apenas um pecado e passa a ser um crime contra o estado. A intolerância religiosa aumentaria com a vitória política do Ocidente sobre o Oriente. Leão I (440-461), o bispo guerreiro, aproveitou bem o prestígio conquistado por impedir Átila, o uno, de destruir a cidade de Roma, reivindicando para si o até então inexistente título de Papa. Foi a deixa para que ocorresse a primeira grande divisão da cristande: o ” Cisma do Oriente”. Definitivamente, o bispo de Roma começa a ser visto não só como autoridade religiosa e passa a ser visto como autoridade política (em 1870 a Igreja Católica ainda declararia o dogma da infalibilidade papal). A posterior queda do Império Romano só fortaleceu o poder de uma Igreja agora centralizada na figura do Papa, a quem os imperadores e reis batiam continência. Diante de tanto poder político, a Igreja deixa de promover a intolerância apenas dentro dos seus muros e passa a exercê-la fora. A Santa Inquisição e o movimento das cruzadas foram as manifestações mais visíveis desta intolerância religiosa generalizada.
Mesmo assim, modos de pensar e de ser cristão hererodoxos sobreviveram em monastérios e em redutos populares, especialmente na sua forma mística e sobre assuntos que não ameaçavam o status quo eclesiástico. As primeiras universidades fundadas pela Igreja Católica e também foram um refúgio para alguns que queriam pensar livremente. No início da era moderna, a Reforma Protestante deu uma contribuição decisiva para a diminuição da intolerância na medida em que quebrou o monopólio da Igreja Católica sobre a verdade revelada. O estímulo ao livre exame das Escrituras Sagradas libertou o cristianismo para reinterpretar a Bíblia e, assim, estabelecer novas práticas. Mas não por muito tempo. Luteranos, calvinistas e anglicanos mantiveram a união entre Igreja e Estado e a imposição de suas doutrinas sobre a sociedade sob pena de prisão e, inclusive, morte. Em contraste, os anabatistas defendiam a liberdade de consciência, a liberdade religiosa e a separação entre a igreja e o estado. Bebês não deveriam ser batizados por que o batismo deveria ser resultado de uma livre escolha pessoal. Sob a sua forte influência, surgem depois os batistas, fruto do movimento separatista inglês, que não aceitava a submissão da Igreja ao estado. Como disse um de seus fundadores, o advogado e pastor Thomas Helwys: “a religião do homem está entre Deus e ele: o rei não tem que responder por ela e nem pode o rei ser juiz entre Deus e o homem. Se houver, pois, heréticos (…) não cabe ao rei puni-los de forma alguma”. Com o êxito dos ideais batistas no maior império do ocidente, o inglês, não foi difícil que alcançasse os cinco continentes. A bem da verdade, outros segmentos do protestantismo também aderiram a eles. A tolerância ganhava mais um fôlego. Até que, no final do século XIX, se levanta nos EUA o fundamentalismo. Em princípio, não mais que uma reação ao racionalismo da Teologia Liberal. Mas evoluiu rapidamente para tornar todos os assuntos teológicos “fundamentais”, de tal maneira que crer de modo diverso sobre qualquer coisa era praticamente ser um herege. As declarações de fé passaram a ter, ainda que jamais admitido, uma peso equivalente ao da própria Bíblia. Isto se deve ao fato de que elas não são
tomadas como um conjunto de interpretações, mas como sendo a própria Bíblia em sua suposta transparência. Não por acaso, hoje em dia o termo “fundamentalismo” é usado para designar qualquer movimento caracterizado pela intolerância. Seu predomínio se deu no sul dos EUA, de onde vieram muitos missionários protestantes para o mundo, inclusive o Brasil, trazendo na mala bastante fundamentalismo. Felizmente no século XX outras forças buscaram pesar a balança para o lado da tolerância. Na Europa, os neo-ortodoxos construíam uma alternativa entre o liberalismo teológico e o fundamentalismo. Na Igreja Católica, o Concílio Vaticano II sacudia velhas estruturas intolerantes e estimulava o diálogo interreligioso. Na cidade suiça de Lausana, é realizada uma conferência histórica com representantes de mais de 150 países onde se discute a integralidade do ser humano para além das diferenças denominacionais. Porém, não foram o suficiente para impedir que a intolerância religiosa sobrevivesse e chegasse forte ao século XXI. Um mundo mais plural e diversificado, onde as minorias conquistam direitos e voz, torna-se uma ameaça para certo segmento do cristianismo. Não conseguindo ajustar a sua teologia a uma nova realidade social, fazem dela uma inimiga a ser vencida e encontra na ideologia política de extrema direita um conveniente reforço para seu fundamentalismo. E pior: uma oportunidade de institucionalizar a intolerância religiosa por meio do Estado. Isto explica em boa parte o que está acontecendo dentro das nossas igrejas e entre as nossas igrejas e o governo. Quem é contra o que faz o presidente, é contra “o escolhido de Deus” ou peca por insubordinação às autoridades divinamente constituídas. Quem se propõe a discutir os problemas das minorias da sociedade ou lutar pelos direitos dos trabalhadores, é “comunista” e, consequentemente, “ateu”. Chegamos ao ponto de líderes evangélicos negros serem “desconvidados” de participar de uma mesa sobre questões raciais em um congresso nacional da juventude batista sob a alegação de serem militantes de esquerda. Por outro, a participação de um representante da equipe do governo federal em outra mesa foi garantida. Não há como negar que a intolerância religiosa cresce e aparece até onde não existia. A boa notícia é que a história é dinâmica e as forças em prol da tolerância nunca deixaram de existir. Em outras palavras, os que seguem o exemplo de Cristo podem fazer a diferença.