Fé e liberdade democrática à luz dos princípios batistas

(Discurso de abertura do Congresso Fé e Liberdade Democrática) por Carlos Novaes.

Começo lendo Josué 4.6-7.

Quando seus filhos perguntarem: O que significam estas pedras?, vocês responderão: A correnteza do Jordão parou diante da arca da aliança do Eterno quando o povo atravessava o Jordão. Estas pedras são uma lembrança perpétua para Israel.

Também falaremos a respeito de passado, de marcos, de memória, de pedras memoriais, de legado para nossos filhos, de história e do sentido dessa história para a nossa identidade hoje.

O tema deste Congresso, já devidamente conhecido daqueles que o acompanham, junta a palavra com a expressão liberdade democrática. Para abordarmos adequadamente tais temas, seguiremos três linhas de reflexão.

 

Em primeiro lugar, para falar de e liberdade democrática é necessário que façamos uma breve retrospectiva histórica do conceito de democracia.

Já é do conhecimento geral que a democracia nasceu na Grécia Antiga, nos longínquos séculos V e IV a.C. A ideia de democracia está tão intrinsecamente ligada à cultura grega que se revela nas narrativas míticas. A deusa Atena, considerada como guardiã da polis e do Estado, recomenda ao seu povo, os atenienses, que assumam a responsabilidade coletiva em favor da justiça. Na peça de Ésquilo (encenada pela primeira vez em 458 a.C.), a deusa Atena declara que Orestes, cuja vida estava ameaçada, deveria ser julgado e que, a partir de então, o povo instituísse juízes prontos a usar a razão e a misericórdia para estabelecer sentenças justas.1

A instituição da democracia marca a diferença essencial entre os governos gregos e outros impérios. Os gregos constituíram organizações públicas, como o senado e as assembleias populares, para garantir que os problemas da polis fossem resolvidos a partir de consensos. 

Até então, nas monarquias e patriarcados, os chefes dos clãs ou, posteriormente, os reis, representavam três poderes: o poder governamental, o poder da força ou militar e o poder religioso Com o estabelecimento do sistema democrático, o exercício do poder político agora se identificava com os direitos dos cidadãos, em que todos eram iguais perante a lei e, ao mesmo tempo, tinham a liberdade de expor e defender publicamente sua opinião. A política passava a ter como finalidade a realização da justiça por meio de leis e constituições elaboradas pelos representantes do povo. Era considerada uma política justa aquela que diminuía as desigualdades humanas. 

Aristóteles menciona o conceito de justiça participativa, na qual o poder é exercido com participação popular. Para Aristóteles, a política é injusta quando trata os desiguais de modo igual, ou os iguais de modo desigual, bem como quando exclui uma parte dos cidadãos, por ser minoria, do exercício do poder. Na filosofia aristotélica, portanto, a política que exclui, em vez de incluir, será sempre uma política injusta.

Quando chegamos à Idade Média, a política volta ao estágio pré-democrático, em que o exercício do poder político era chancelado pela autoridade religiosa. Os reis medievais, considerados representantes de Deus na terra, recebiam na coroação a bênção do papa, como se deu com Carlos Magno no ano 800 da nossa era.

As monarquias medievais possuíam três características principais: a) o rei não representava seus súditos governados, mas representava Deus, por quem fora ungido; b) o rei (como demonstrou Ernst Kantorowictz em sua obra bem conhecida, Os dois corpos do rei) era visto como alguém que, além do corpo humano mortal, detinha um corpo místico imortal, seu corpo político2; c) fazer justiça passou a significar fazer favores ao povo, isto é, o povo — sem qualquer direito estabelecido — dependia unicamente dos beneplácitos reais.  

Enfim, chegamos aos séculos XVI e XVII, quando a democracia ressurgiu para se contrapor a um sistema que divinizava reis e governantes.

Foi precisamente nesse período que também se deu o surgimento das igrejas separatistas na Inglaterra, ambientado na filosofia da competência e da autonomia do indivíduo, propagada especialmente por John Locke e seus entusiastas, da qual procedem os ideais de liberdade religiosa e separação entre Igreja e Estado.

Do movimento das igrejas separatistas inglesas vieram as denominações históricas, como os congregacionais, os presbiterianos, os metodistas e — razão pela qual aqui estamos — os batistas.

No capítulo das origens e da história dos batistas, um nome a se destacar foi, sem dúvida, o de Thomas Helwys, defensor incansável da liberdade religiosa e do princípio de separação entre Igreja e Estado. Rejeitando, com todas as forças, a interferência política no campo religioso, num dos seus textos, Helwys adverte que mesmo os antagonistas declarados da fé cristã não deveriam ser perseguidos ou coagidos. Cito literalmente as suas palavras:

 

A religião dos homens é entre Deus e eles próprios.
O rei não deverá responder por ela.
Deixemos que os homens sejam hereges, Turcos, Judeus ou o que lhes convier,
mas não compete ao poder terreno puni-los em qualquer medida.3

 

Chamo a atenção de vocês para a maneira específica como os batistas participaram da construção dessa fase da modernidade no pensamento ocidental. Observem como se deu a contribuição dos batistas para a criação da nova ordem democrática ao se manifestarem clara e abertamente em defesa dos direitos da pessoa humana, independente de origem, credo ou cultura. Percebam como os batistas, no século XVII, tal qual alguns outros predecessores das denominações históricas, se apresentaram como porta-vozes da modernidade, promotores do novo e partidários do pensamento de vanguarda.

 

Em segundo lugar, para falar de e liberdade democrática é necessário perguntarmos: o que aconteceu com os profetas da modernidade?

Os batistas ingleses possuíam um discurso que retratava a modernidade revolucionária nascente no mundo ocidental.

Haveria maior modernidade revolucionária, num mundo em que se firmava a monarquia absolutista, do que falar em ordem democrática?

Haveria maior modernidade revolucionária, num mundo acostumado ao controle da Igreja Estatal, do que defender a separação entre Igreja e Estado?

Haveria maior modernidade revolucionária, num mundo em que falava mais alto a hierarquia eclesiástica, do que apregoar a autonomia da congregação e o sistema congregacionalista anticlerical?

Haveria maior modernidade revolucionária, num mundo em que as pessoas permaneciam reféns da autoridade eclesiástica imposta às escolhas e decisões, do que anunciar a liberdade religiosa e exaltar a voz da própria consciência?

Afirmo que os batistas surgiram como revolucionários modernos, como progressistas revolucionários numa sociedade ainda presa a costumes ressonantes da Idade Média. 

E então, observando o que nos tornamos hoje, indago: o que aconteceu? O que houve para os antigos profetas da modernidade, os progressistas do século XVII, os vanguardistas de uma época, transitarem de um perfil moderno e revolucionário para algo que mais se aproxima de silhuetas reacionárias, encalhadas em formas e propostas que já não respondem às perguntas da atualidade?

No que tange aos batistas brasileiros, considero a seguinte explicação: não recebemos aqui os contornos mais flagrantes e modernizantes da identidade original dos batistas ingleses. O pensamento batista que chegou ao Brasil foi filtrado, de modo geral e com raras exceções, por dois modos de pensar e de ser: o landmarquismo e o fundamentalismo, herdados do protestantismo de missão do sul dos Estados Unidos.

O landmarquismo, ao declarar e ensinar que os batistas são os únicos cristãos verdadeiros, numa linha ininterrupta de igrejas desde Jerusalém até as igrejas locais da atualidade, inaugurou o nosso espírito triunfalista e isolacionista. Ao mesmo tempo, a postura fundamentalista promoveu a rejeição à reflexão intelectual e cultural, a hermenêutica literalista e dogmática, o dualismo maniqueísta e a ética baseada num mero moralismo de hábitos e costumes.

Essa questão exigiria o tempo de outra preleção inteira, mas fique sublinhado que — lançando mão de uma frase usada por Jesus a seus discípulos em outro contexto — “não foi assim desde o princípio”. Os batistas brasileiros não são filhos dos princípios originários dos batistas ingleses, pois são, na verdade, e de alguma forma continuam sendo, filhos da maneira fundamentalista e landmarquista de ser batista. Os antigos guardiões da modernidade se transformaram em vendilhões da modernidade.

A fé que defende a liberdade democrática há de se mostrar verdadeiramente herdeira dos mesmos princípios que no século XVII despertaram gerações para combater as iniciativas autoritárias, o uso do discurso religioso para chancelar abusos do poder político e o desrespeito à dignidade humana em nome de estruturas eclesiásticas, conceitos dogmáticos ou interesses clericalistas.

Esclarecido isto, sigamos adiante.

 

Em terceiro lugar, e caminhando rumo à conclusão, para falar de e liberdade democrática, precisamos compreender a fé como ponte, e não como obstáculo à liberdade democrática.

Repito: a fé deve ser ponte, e não obstáculo à liberdade democrática.

Quando é que a fé se torna ponte? Ou, no sentido oposto, quando a fé se torna obstáculo?

Convém introduzir neste ponto o conceito de fé lúcida em contraposição à fé fanática. 

Defino como fé lúcida a que — como o próprio adjetivo sugere — ilumina, clareia, esclarece. A fé fanática, por seu turno, segue caminho contrário: obscurece, sombreia e cega.

Citando Amós Oz, escritor israelense, o fanático só sabe contar até um4. É incapaz de vislumbrar o que está para além do patente, do concreto, da forma, do rótulo.

De modo diverso, a fé lúcida não só faz o cego enxergar, como também torna cada vez mais nítida a sua visão — a exemplo do que ocorreu com o cego de Betsaida, na narrativa de Marcos: o toque de Jesus aperfeiçoava a sua capacidade de enxergar com clareza as diferenças entre homens e árvores. O que chamo de fé lúcida é esse mesmo processo de amadurecimento, propiciando a capacidade cada vez maior de discernir e distinguir as especificidades da realidade ao redor. 

A nós, uma comunidade de fé batista, seja na experiência de uma igreja local ou na vivência denominacional, cabe não só ter a fé que pode ver, mas se faz imprescindível que desenvolvamos ou amadureçamos a fé lúcida, capaz de distinguir homens de árvores.

Voltamos, então, à declaração inicial: a fé deve ser ponte para a liberdade democrática, e não obstáculo. 

Para encerrarmos, faço alguns comentários complementares sobre a fé que preserva e fortalece a liberdade democrática — a exemplo do que têm feito, e são desafiados a continuar fazendo, os batistas ao longo da história, desde as suas origens na Inglaterra do século XVII.

 

  1. Os princípios batistas devem ser recordados e ensinados, como as pedras memoriais mencionadas no texto de Josué 4, pois vivemos tempos de desconhecimento de tais princípios na teoria e, especialmente, na prática. Os princípios servem para todos os tempos e transcendem as gerações.

No campo da política, por exemplo, e como herdeiros dos princípios batistas, não acreditamos em salvadores da pátria messiânicos nem embarcamos em aventuras de caráter antidemocráticas, mas definimos sempre nossas posturas e ações a partir dos mesmos valores de liberdade e democracia que serviram para marcar o início da modernidade ocidental.

 

  1. A luta pela democracia, em sua essência, é uma luta incessante pela universalização de direitos. Sem direitos humanos universais não há democracia. E a democracia é o único regime que garante convívio social justo. 

Além disso, convém enfatizar que os regimes democráticos dependem de sociedades democráticas. Se a sociedade não tiver formação e educação democráticas, se não houver a cuidadosa preservação de uma cultura democrática, os regimes democráticos não subsistirão. 

Uma sociedade só é autenticamente democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da República e respeito à vontade das maiorias e carências das minorias, institui e assegura direitos.

Pois os batistas precisam participar constantemente da defesa, da divulgação e da preservação dessa cultura democrática de direitos, nunca abrindo mão de saber enxergar e reconhecer qual é o seu lado nessa luta. 

 

  1. A fé não pode se tornar mero instrumento de chancela do poder político. Pelo contrário: a fé há de ser crítica — e, por extensão, a comunidade de fé, ou a Igreja, precisa assumir o seu papel profético a fim de denunciar os errôneos caminhos dos reinos humanos e anunciar os valores do Reino de Deus.

O chamado bíblico para que oremos pelos governantes e os respeitemos não significa, em absoluto, rendição acrítica a quem governa. O princípio estabelecido por Cristo, de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, é um princípio restritivo. A César deve ser dado apenas o que pertence a Cesar. Quando César começa a exigir o que é de Deus — e atentar contra a dignidade humana é sempre investir contra o que pertence a Deus — então temos a autorização do Mestre para divergir, denunciar e desobedecer.

Em termos bem concretos: também sou contra a corrupção, também quero igrejas livres, também desejo o melhor para o meu país — mas não acredito que, em nome de tais objetivos, devamos vender a alma ao diabo só porque ele também parece defender as mesmas coisas.

Como bem observou Dostoiévski, em Os irmãos Karamázov, temos às vezes a impressão de que a Igreja destes tempos em que vivemos (e me refiro aqui especificamente agora à parte mais midiática da chamada Igreja Evangélica) aceitou, por uma questão de vaidade, arrogância e prazer mórbido, todas as tentações que foram rejeitadas por Jesus no deserto: transforma pedras em pães para saciar sua fome de influência, salta do cimo do templo para exibir o controle caprichoso dos poderes divinos e se ajoelha diante dos poderes mundanos para honrá-los e engrandecê-los.

 

  1. O fundamentalismo é um câncer no organismo de uma comunidade que, na sua origem, apregoou princípios progressistas e revolucionários.

Defendo a ideia de que a melhor coisa que acontece a uma pessoa é conhecer o evangelho. A segunda melhor coisa é conseguir se livrar do fundamentalismo evangélico.

Para os batistas, originários de princípios como liberdade religiosa e autonomia democrática — e como herdeiros da Reforma que proclamava a salvação pela graça e o sacerdócio universal dos crentes — erguer-se contra posturas fundamentalistas não é só uma questão de coerência, mas é, em especial, uma obrigação imposta por sua identidade.

Não nos deixemos enganar pelo falso discurso fundamentalista de amor pelas Escrituras. O fundamentalista ama as Escrituras assim como o marido que surra e mata a esposa por amor. O amor do fundamentalismo às Escrituras é doentio, é nocivo, é o amor fanático. A sua hermenêutica é rasa e o seu literalismo é neurótico. O fundamentalista ama as Escrituras assim como os fariseus e escribas amavam a Lei. É o amor que, se apegando apaixonadamente à letra, já não consegue reconhecer os princípios e o espírito por trás da letra.

O maior serviço que podemos prestar às Escrituras, portanto, é a peremptória e inegociável rejeição do fundamentalismo.

 

  1. A quinta e última tese se baseia numa pequena história doméstica.

Tive o privilégio de ser criado num lar com livros espalhados por todos os lados. Meu pai era, e ainda é até hoje, um leitor faminto. E nas minhas infância e adolescência, sempre que podia, recomendava a leitura de trechos das obras que lia. Em certo período em que comecei a andar na companhia de outros meninos das ruas vizinhas, cujo comportamento era questionável, meu pai me passou às mãos um livro de narrativas históricas com teor moral. Não me recordo mais o título do livro — afinal, minha infância e minha adolescência estão a, pelo menos, cinquenta anos de distância. Mas lembro bem de uma das histórias. 

O imperador Alexandre passava a tropa em revista ao se deparar com um dos soldados trajado de forma desleixada: uniforme roto e amassado, capacete sem polimento, botas enlameadas. O famoso conquistador grego perguntou ao soldado relapso: “Qual é o seu nome?” Ao que o soldado respondeu: “Alexandre”. O imperador Alexandre, o Grande, então, advertiu: “Ou você muda de comportamento, ou muda de nome”.

Ultimamente, frente à realidade que vivemos, em especial em nosso país, nós os batistas brasileiros havemos de cuidar atentamente das companhias com as quais andamos, dos discursos que adotamos, dos heróis que aplaudimos e elegemos. Os batistas têm uma história que lhes outorga sua distinção e sua identificação mais importante, herdada dos princípios que formaram a modernidade ocidental: a liberdade e a democracia.

Não fazemos diferença no mundo se batizamos por imersão ou aspersão, se distribuímos ou não a Ceia para aqueles que se enquadram na mesma fé e ordem, se cantamos hinos tradicionais ou cânticos contemporâneos, se somos avivados ou tradicionais, ou qualquer outra coisa em torno dessas polarizações totalmente desimportantes. Fazemos diferença nesse momento histórico e político em que estamos hoje se permanecemos ou não como defensores da liberdade e da democracia. 

O impasse é o mesmo da história no livro do meu pai: ou permanecemos fiéis a esses princípios realmente relevantes para a sociedade, ou mudamos de nome.

Carlos Novaes

Pastor da Igreja Batista Barão da Taquara – RJ

Professor da FABAT

NOTAS

1 Trecho de Eumênides, in: Oréstia, de Ésquilo. Zahar (Tragédia Grega, volume 11).

2 KANTOROWICTZ, Ernst. Os dois corpos. Companhia das Letras.

3 HELWYS, Thomas. A short declaration of the Mistery of Iniquity. The Kinghsgate Press.

4 OZ, Amós. Contra o fanatismo. Companhia das Letras.