“NÃO JULGUEM, PARA QUE VOCÊS NÃO SEJAM JULGADOS.” (MT 7.1)

Remy Damasceno Lopes

NÃO JULGAR: o que Jesus quis ensinar?

Alguns textos bíblicos são bem difíceis de se entender, outros, ainda bem, com um pouco de paciência, conseguimos entender sem precisar de muita ajuda. Esse é o caso do “não julguem” de Mateus 7. 1. Para entender o que Jesus condena, é fundamental ler todo o capítulo 7.

Um erro comum na interpretação de um texto, a Bíblia inclusive, ocorre quando o leitor confere o sentido de uma palavra por suas próprias compreensões e não pelo que o próprio texto revela. Para evitar esse erro, vejamos as atitudes que o texto diz serem coerentes, que não constituem um julgamento, para, depois, entender o que Jesus condena.

Jesus nos ensina que precisamos evitar pessoas, não dar a elas o que nos é precioso, sagrado (7.6). Quando você evita a proximidade de certas pessoas por considerá-las falsas, perigosas, capazes de traições, você não está julgando. Como chegar a essa afirmação? Simples, o mesmo Jesus que condena o julgamento, ensina sobre a importância de evitar ter proximidade a pessoas com esse perfil. Acreditando na coerência de Jesus, precisamos assumir que certas pessoas são perigosas, falsas e devem ser evitadas e isso nada tem a ver com julgamento. E para se conseguir chegar à conclusão de que alguém é perigoso será preciso uma análise inteligente e sensível. Ou seja, podemos concluir que não há condenação do raciocínio criterioso, nem da atitude corajosa de se concluir sobre a falsidade do outro. Julgamento está relacionado a outra questão. Mas vejamos algo antes.

Jesus alerta sobre o perigo dos falsos profetas (7.15) e diz que devemos identificá-los, reconhecê-los (7.16). Ou seja, para Jesus é correto um cristão identificar um falso profeta. Mais que correto, é um ato de fidelidade aos ensinos de Jesus, sinal de maturidade espiritual. Quando você afirma, fundamentado em fatos, que um determinado líder é um picareta, um charlatão da fé, você não está julgando, está, apenas, sendo fiel ao que Jesus orientou que seus discípulos fizessem.

O que fazer quando se identifica um falso profeta? Jesus dá a resposta ao se referir aos “porcos” e “cães” (7.6): evitem-no, protejam-se. E aqui surge uma questão adicional. Devemos pensar somente em nós ou também no outro que poderá ser “devorado pelo lobo” (7.15)? Será o cristianismo um “cada um por si e Deus por todos”, uma expressão contundente do individualismo ou uma comunidade que busca o bem comum, que busca amar o outro como amamos a nós mesmos? A resposta também é dada por Jesus e você sabe qual é. Só há uma única resposta coerente alinhada ao amor cristão: movido pelo Espírito Santo, alertar os outros sobre a existência do falso profeta.

Então é possível denunciar falsos líderes cristãos? Não só pode, como deve. Será um ato de fidelidade cristã, sinal de que você é um discípulo de Jesus, de que segue seus ensinos. Mas falam que não se pode denunciar um ungido do Senhor, que devemos silenciar diante de um pastor desonesto, mulherengo, charlatão. Falar até falam, mas não Jesus. Jesus fala exatamente o oposto disso. E o cristão fiel segue sempre Jesus.

Julgamento não é, portanto, analisar e concluir pela falsidade do outro, seja ele um líder ou não. Aliás, não analisar será sinal de imaturidade espiritual, como também intelectual e emocional. Deixar de assumir sua conclusão sobre o desvio moral do outro será sinal de covardia espiritual.  A fidelidade cristã exige a reflexão corajosa e a denúncia do líder que intenciona “devorar” os mais fragilizados.

Compreendido o que não é julgar, entendamos o que Jesus condenou. Sua condenação envolve a falta de humildade, a postura de se arvorar melhor que o outro, de acreditar-se digno o suficiente para poder condenar as pessoas. Aliás, essa é a postura do juiz, ou melhor, sua obrigação: a ele cabe condenar ou absolver. Perceba, a questão envolve a humildade, tanto é assim que Jesus advertiu sobre o risco que o arrogante, que se percebe como um juiz, corre de perceber pequenos deslizes no outro e ignorar erros grosseiros em si (7.3). Julga quem pensa poder olhar o outro de cima pra baixo, que se percebe melhor, mais justo. A essa postura Jesus condena. Somente Jesus, o justo juiz, tem condições para julgar.

Quando um líder interpreta o não julgar como uma impossibilidade de se “levantar a mão contra o ungido do Senhor”, silenciando possíveis críticas à sua postura, o resultado é exatamente o contrário ao buscado por Jesus. Esse líder se perceberá apto a criticar os outros, mas defenderá estar blindado a críticas. Ou seja, ele assumirá uma postura arrogante, de quem olha os outros de cima para baixo. Ao invés da postura humilde ensinada por Jesus, o erro na interpretação gerará exatamente o que Jesus buscou evitar: que seus discípulos se tornassem arrogantes, distantes do olhar gracioso do evangelho.

Tendo essa postura humilde e paciente, marcada por misericórdia e esperança, mas não negligente e covarde, podemos ter a calma para olhar os atos rotineiros do outro e concluir por sua falsidade. É o que Jesus ensina sobre os frutos revelarem a qualidade da árvore (7.16-18). Frutos bons revelarão a coerência da pessoa, os maus frutos, clarificarão a má intenção do outro. Perceba: não é um fruto, um ato isolado. Erros, todos cometemos. Jesus fala de uma prática continuada que revelará uma intencionalidade do mal. Alguma dúvida? Pense em alguns pastores midiáticos e enxergará exemplos perfeitos de falsos profetas.

Precisamos fugir da postura julgadora, arrogante, pois ela se distancia da misericórdia apresentada por Jesus. O julgador não apresenta interesse por entender os motivos que levaram o outro a agir, não tem vontade de perceber se há alguma coerência, ou se foi um ato isolado, ao contrário, conclui rapidamente pela culpa. O arrogante julgador despreza com facilidade o outro, consegue descartar o diferente, convertido em inimigo, com inquietante indiferença. Uma pessoa assim, acaba por mesclar arrogância com crueldade e transforma-se num carrasco do outro e de si mesmo.

O julgador não consegue viver a graça misericordiosa de Deus por estar inserido numa lógica meritória, punitiva, cujos critérios de avaliação são os seus. O problema se agrava, pois o mesmo critério utilizado para julgar o outro será utilizado para julgar a si mesmo, é o que ensina Jesus ao falar que seremos medidos pela mesma medida que usarmos para julgar o outro (7.2). O resultado será inevitável: se o julgador arrogante for honesto, enxergará sua enorme trave no olho (7.3) e ficará em insuperável culpa. Se não suportar a culpa, se transformará num hipócrita. Ficará em permanente negação do seu próprio mal e precisará permanentemente identificar erros nos outros, mecanismo protetivo utilizado para conseguir não se ver. Num caso ou no outro o resultado será o mesmo: se transformará numa pessoa insuportável e viverá distante de Jesus. Triste ironia, o julgador arrogante transforma-se num falso profeta para si mesmo. Sua rigidez moral o afastará do evangelho de Jesus que se assenta na misericordiosa graça e convida a arrependidos recomeços.

One thought on ““NÃO JULGUEM, PARA QUE VOCÊS NÃO SEJAM JULGADOS.” (MT 7.1)

  1. Formidável! Uma interpretação muito fidedigna baseada em tudo o que Jesus ensinou nesse texto. Lido rapidamente e sem a reflexão de Suas palavras, esse texto acaba blindando os maus pastores que passam ilesos, inculpáveis e continuam a machucar as ovelhas do rebanho e a envergonhar o evangelho.

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