UMA FÉ DE CORPO AUSENTE

Por Pr. Dercinei Figueiredo

 

Hoje, três de junho de 2021, muitas de nossas irmãs e irmãos espalhados pelo mundo celebram o Corpus Christi. Que é, fundamentalmente, uma comemoração da Eucaristia. O que nós, evangélicos, majoritariamente, chamamos de “Santa Ceia” ou “Ceia do Senhor”.

É uma pena que a construção do “Protestantismo Brasileiro” tenha se dado às custas do esvaziamento da fé evangélica de símbolos universal e historicamente cristãos, e também tenha impedido a criação e a inserção de símbolos próprios. Como não é só a natureza que abomina o vácuo, esse vazio acabou sendo preenchido por símbolos da fé judaica.

Se nossa história tivesse sido outra, poderíamos, embalados por canções e orações, estar embelezando o entorno de nossos templos com aqueles lindos tapetes multicoloridos “bordados” com cenas da “última ceia” e com mensagens de fé, amor e esperança: “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria”.

A ausência de rituais e símbolos, não concedeu à fé evangélica a pretendida superioridade intelectual. Assim como não a tornou espiritualmente melhor. Pelo contrário, a fé evangélica tornou-se uma fé espiritualizante, ou seja: é uma fé que ouve, mas não escuta; é uma fé que vê, mas não enxerga; é uma fé que fala demais e muito alto, mas não diz; é uma fé que come e bebe, mas não aprecia, porque não apetece; é uma fé que sente, mas não percebe. É uma fé de corpo ausente.

A fé evangélica não é uma fé encarnatória. O corpo é uma permanente ameaça ao espírito. Mesmo quando o corpo é o corpo de Cristo. A celebração da Ceia do Senhor, por exemplo, não passa de uma ordenança bíblica cuja interpretação teológica, expressa na doutrina, reduz o corpo de Cristo ao pão de forma cortado em cubinhos (e o sangue de Cristo ao suco de uva disposto em pequenos cálices).

Impossível não me lembrar que, no começo dos anos setenta, graças à singeleza e à gentileza de um Diácono, depois da Celebração da Ceia, eu e outras crianças, que não podíamos dela participar, pois ainda não havíamos sido batizadas, comíamos o “corpo” e bebíamos o “sangue” do Cristo à vontade. O belo é que, em qualquer sentido que se vá, “o corpo de Cristo à vontade” é uma sublime memória eucarística que se impõe sobre quaisquer outros memoriais neste coração pastoral batista de terceira geração.

A Ceia do Senhor e essa forma de servi-la, é só um exemplo. Um bom exemplo. Somos memorialistas. E nos orgulhamos disso. Mesmo sem sabermos exatamente o porquê. Mas essa não é a questão. Nem uma mudança dogmática, hermenêutica ou teológica. A questão é que uma fé encarnatória é que dá corpo, que encarna um crer, um sentir, um pensar, um desejar, um contemplar, um mover, um enlevar, um sublimar, um transcender, e não uma fé espiritualizante.

Considerando apenas os cultos comunitários públicos, símbolos e rituais são formas de informação e transformação, de se dar corpo e se encarnar: “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2.6-8).

O Cristo é o seu corpo e a sua paixão. A espiritualidade, ainda que nos exija disciplinas apofáticas, de modo algum é fuga, anulação ou negação do corpo. Seja físico. Seja místico. A espiritualidade é corpórea e apaixonada.

É a fé  – especialmente pública e comunitária – que deixa de ser espiritualizante e se ressignifica como encarnatória, que encanta ao invés de ameaçar, que convida ao invés de coagir, que oferta e ao invés de constranger, que propõe ao invés de impor, que conforta ao invés de confrontar, que encoraja ao invés de aprisionar, que convive ao invés de segregar, que concilia ao invés de dividir, que participa ao invés de se esconder, que se compromete ao invés de se isentar.

É principalmente a fé que não foge a luta; que combate bem, com habilidade e dignidade; que combate bons combates, porque independentemente dos resultados, existem lutas que valem a pena pela causa, pelo legado, pela companhia. É a fé que nos desafia: “Se vir uma boa briga, entre nela!”

Quem dera, hoje, Dia de Corpus Christi, nós, enquanto Corpo de Cristo, assumíssemos nossa natureza teândrica e encarnássemos o Cristo, e nos fizéssemos olhos, ouvidos, bocas, mãos, braços e abraços do Cristo. Um Corpus Christi a ser tocado. E, quem sabe, dele ver sair alguma virtude.

One thought on “UMA FÉ DE CORPO AUSENTE

  1. Belo e profundo texto, meu querido Dercinei, provocador de reflexões sobre o nosso ser e viver em Cristo, de ume forma que encarnemos seus ensinamentos e os façamos vida e presença na sociedade de que somos parte. Um incisivo basta à espiritualidade dualista, etérea e nociva hoje dominante. Um abraço!

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