HERMENÊUTICA QUE FAZ VIVER

Por José Flores

 

A vida leve é um valor, mesmo um alvo, mas não a todo custo. Por mais cansativo que seja, há necessidade de problematizações cotidianas sobre as decisões e práticas da vida. Isso inclui a vivência da fé e, entre seus múltiplos aspectos, envolve a leitura bíblica. Algo que precisa ser, sob necessárias modulações, agradável, inspiradora, desafiadora e tensa. A tensão e certa dose de desafio decorrem da exigência de coerência. E penso que esta pode ser avaliada sob algumas perspectivas. Abordarei apenas uma, antes, porém, permita-me algumas considerações prévias.

 

Toda leitura, bíblica ou não, constitui um novo discurso elaborado sobre o discurso escrito. Sempre que lemos a Bíblia, fiquemos somente nela, revestimos o texto escrito com conteúdos apresentados por nós. Basta um exemplo para elucidar o que digo. Ao lermos que devemos amar os inimigos, somos desafiados a gostar deles ou a fazer-lhes bem? Provavelmente, um leitor europeu do século X diria prontamente que envolvia a produção de bem, já um leitor brasileiro do século XXI pensará que envolve sentimentos favoráveis. Motivo? Nossa concepção de amor é modulada pela compreensão sobre o amor romântico, algo inexistente pelos idos do século X, onde se pensar em casar por amor constituía uma excentricidade. Então, quando falamos em afetos no amar o inimigo, elaboramos um novo discurso sobre o discurso inicial expresso nas palavras de Jesus conforme registrada nas Sagradas Escrituras. Inevitavelmente, toda leitura constitui uma produção de novos discursos. Daí a importância de bons critérios de análise para que o discurso-do-leitor seja coerente ao discurso-escrito. Afinal, nunca somente lemos, sempre interpretamos, sempre inserimos conteúdos. Sempre.

 

Na importante busca pela coerência na interpretação, ou seja, na produção do discurso-do-leitor, detemo-nos, habitualmente, apenas em um caminho: perceber com clareza o que foi dito, seus motivos e suas implicações para o tempo atual. Movimento indiscutivelmente necessário, mas, julgo eu, não suficiente.

 

Voltemos ao exemplo do amor ao inimigo. Revesti-lo de afetos amistosos, favoráveis, mesmo carinhosos, poderá inserir aqueles que assim acreditam numa dimensão de culpa, ou idealização das pessoas, ou negação do mal em si etc. Ao mesmo tempo, aqueles que compreendem que é fazer o bem, isentando-os do envolvimento afetivo, poderá levar seus adeptos a posturas enrijecidas, distanciadas, quase indiferentes. Como revestir uma leitura, que sempre será uma interpretação, de coerência?

 

Jesus criticou aqueles que o perseguiam, afirmando que eles eram estudiosos criteriosos das Escrituras Sagradas por acreditarem que elas produziam vida eterna, mas rejeitavam o caminho apontado por ela mesma na busca pela vida (João 5.39,40). Ou seja, estudavam com zelo e intensidade, mas rejeitavam os pressupostos apresentados nas Escrituras e o resultado era o oposto ao pretendido: ao invés de vida, morte. Como seus estudos não produziam vida em Deus, ao ensinar a outros, não somente se mantinham distantes do Reino de Deus, como atrapalhavam seus discípulos de aproximarem-se da vida pretendida por Deus (Mateus 23.13). O estudo criterioso das Escrituras, portanto, pode produzir mal, muito mal. Tal fato nos leva a uma pergunta necessária, mesmo que especulativa, sobre quais seriam os impedimentos que comprometia a compreensão daqueles homens sobre a proposta de Jesus? E, ainda mais importante para nós, aliás, fundamental, refere-se ao desafio de como percebermos que uma interpretação, mesmo que fruto de minucioso estudo, encontra-se cravado por grosseiros erros espirituais, tal como ocorria com a liderança religiosa do tempo de Jesus?

 

Da primeira pergunta, convido você a interrogar-se, ou melhor, imaginar cenários possíveis que levaram tais homens a se distanciarem da Palavra Viva de Deus. Eu percorrei a segunda questão, mas apenas em um de seus caminhos, dentre outros possíveis e complementares.

 

Recorrerei à assertividade de Tiago quando afirma que convicções que não produzem ações coerentes denunciam sua falência (Tiago 2.17). Não existe a menor possibilidade de uma pessoa possuir fé e não dar tons vivos e claros de sua existência. Mas você poderia argumentar que isso se refere aos caminhos individuais de quem diz crer, mas não foi impactado pela regeneração do Espírito e, portanto, nada tem a ver com hermenêutica. Verdade. Mas e quando um grupo é ensinado por anos à fio sobre as Sagradas Escrituras e o resultado na prática de vida é o exato oposto ao pretendido por Jesus? E o mais grave, tais pessoas tornam-se mais desrespeitosas, indiferentes, ansiosas, embrutecidas que aqueles imersos em outras fontes discursivas? Não dá pra considerar desvio pessoal o que ocorre com a ampla maioria de pessoas imersas num determinado modo de pensar.

 

Resgatemos o exemplo sobre o amor. Imagine que uma igreja leia o texto bíblico de uma determinada forma (ou seja, produza um discurso sobre o texto sagrado) e, após anos, a maioria das pessoas daquela igreja sente-se confortável em ignorar os pobres, os doentes, os sofridos do mundo. E que essas mesmas pessoas consigam se sentir fiéis por, digamos, defenderem as “sãs doutrinas”. Eu não preciso saber muito bem sobre o que ensinam, nem como interpretam as Sagradas Escrituras, para saber que interpretam equivocadamente, pois a mensagem não tem conduzido as pessoas em direção a Deus. Pois, conforme nos ensina não somente Tiago, mas também João, não dá pra amar Deus sem atos concretos de ajuda a quem sofre (1 João 3. 16,17).

 

Como diria Kierkegaard[1], um discurso, para ser cristão, precisa edificar. Se não edifica, não é cristão. Edificar o quê? A mente de Cristo nas pessoas. Então, eu já sei, mesmo sem estudos aprofundados, que uma determinada interpretação da Bíblia defendida por determinado grupo, que produza sentimentos e condutas contrárias à Jesus na grande maioria de seus ouvintes, encontra-se equivocada.

 

Quando você se deparar com interpretações bíblicas que geram cristãos orientados pelo medo, percebendo o diferente como ameaça, forjando vidas rígidas, sem graça e sem brilho, que soneguem esperança na busca pela vida digna para si e para os outros, sem movimentos concretos de misericórdia, pode analisar, elas são contrárias ao que Jesus ensinou e viveu. Uma hermenêutica orientada por Jesus fomentará em seus leitores a capacidade de enxergar a beleza das flores, de valorizar os movimentos das crianças, de celebrar os abraços de vida, de cultuar a Deus nos detalhes do cotidiano.

[1] Encontra-se no livro “O Desespero Humano”, logo em seu prefácio.