HÁ LIMITES PARA A COMPETÊNCIA DO INDIVÍDUO?

Um dos princípios mais caros aos batistas é o da competência do indivíduo. Por ele os batistas ajudaram a cristalizar dois caríssimos conceitos da Modernidade: a liberdade e a responsabilidade. Ao afirmarmos a competência do indivíduo estamos expondo uma compreensão de que o ser humano é capaz de escolher seus caminhos e mais ainda, arcar com as responsabilidades advindas dessas opções.
Mas a questão é: há um limite para essa liberdade humana que encontramos na competência do indivíduo? Quero sugerir a você, caro leitor, três limites, numa lista que não se esgota por si mesma.
O primeiro deles, de caráter mais teológico, aponta para um limite à liberdade da humanidade como um todo. Se a História caminha para um ponto não crítico, mas Crístico, não pode caber ao ser humano decretar o final de sua espécie. O fim da História precisa acontecer pelo fim do desvelamento divino, pela chegada no ponto “ômega”, e não por um tropeço ou por um deslize humano. Entendo que mesmo que Deus permita (lembrando que a permissão de Deus é sua inação) que o ser humano dê fim à Sua Criação, isso terá mais feições de um processo do que de um acidente.
O que estamos tentando afirmar é que, se pelo lado filosófico concordamos com a tese esboçada por John Locke de que Deus na Sua Soberania se autolimitou, pelo aspecto teológico precisamos reconhecer que nem Deus, nem a História se tornaram reféns da liberdade humana. Quando muito, a História é consequente a esta liberdade. Sim, a liberdade humana está inclusa num diapasão, ou se preferir, num intervalo matemático, só que divino.
O segundo limite eu denomino aqui extra temporal. Sob essa classificação quero simplesmente defender que o que nos transcende, o que está para além da dimensão temporal não está sujeito a nós. Nós não “movemos o sobrenatural”, não temos como manipular o Eterno, nem tampouco o que está sob a égide da eternidade.
A implicação prática deste segundo limite? Cremos como batistas que somos incapazes de nos salvarmos. A nossa maior competência é no final das contas, assumir a nossa total incompetência, o nosso fracasso. O indivíduo, portanto, não se salva, mas tem competência para escolher o caminho da salvação, para aceitar a Graça de Jesus. No dizer de Locke, “Deus mesmo não irá salvar alguém, a menos que este o queira”.
O nosso limite se manifesta também na direção do outro. Ora, se alguém não consegue se salvar, muito menos ainda terá êxito em salvar um terceiro. Tal noção remete a algo claro e caro para os batistas: o convencimento se dá pela ação do Espírito Santo e não pela imposição de alguém, de uma figura de autoridade ou mesmo do Estado. Isso é importante de ser assinalado. Ao contrário dos fundamentalistas que desejam impor sua visão de mundo e inclusive forçar, por vezes a conversão alheia (um exemplo clássico disso na história recente foi o martírio de cristãos pelo ISIS), os batistas respeitamos a escolha individual, mesmo que discordemos dela. Inclusive defendemos o direito à liberdade religiosa, a outro tipo de culto (e aqui fomos além de Locke), mesmo que discordemos do conjunto de crenças da religião do outro. Defesa do princípio da liberdade religiosa, herança do DNA batista na modernidade não significa amalgama de crença. Significa respeito ao outro e reconhecimento da mesma dignidade que temos no direito do outro em fazer suas escolhas.
Importante salientar que essa questão fundamentalista não está restrita ao islamismo. Os cristãos tivemos momentos fundamentalistas na história. Os batistas, vez por outra flertam com um fundamentalismo de verniz protestante. Relembro novamente Locke: “não cabe ao Estado se imiscuir nas questões espirituais/religiosas”. Devemos pregar o Evangelho, mas sempre à margem do Estado, jamais pelo Estado, como bem exemplificou Jesus. É a força do argumento e não o argumento da força, como diz o professor Urbano Zilles…
Para terminar, há um terceiro limite à competência do indivíduo: o que chamo aqui de intra-eclesial. Através dele quero defender a tese que, embora tenhamos preferências políticas, e alguns até filiação partidária, a igreja é apartidária. Tenho dito na Igreja que pastoreio que o partido do profeta é Deus e Sua Justiça. Diante disso a convivência comunitária precisa transcorrer respeitando as diferenças de percepção política, sem, pelo menos no ambiente eclesiástico, demonizações de ideários de direita ou de esquerda. Somos competentes para exercer a nossa cidadania e para manifestar tolerância com a opinião divergente.
Historicamente sempre houve líderes batistas progressistas e também conservadores. Na primeira metade do século XX, alguns dos maiores filósofos sociais defenderam a tese de que os batistas eram progressistas. Seu ideal de igualdade, sua forma de congregacionalismo, sua preocupação social e com a sociedade apontava para esse elogioso (sim, enquanto Ernst Troeltsch, por exemplo, criticava os presbiterianos, luteranos, ele rasgava elogios a nós batistas) caminho. Talvez porque como batistas levemos muito a sério, pelo menos nos nossos púlpitos, o desejo de reeditar a koinônica Igreja Primitiva. A experiência igualitária mais sensacional que o mundo viu, mas que durou somente três capítulos…
Os batistas, como denominação, não somos, nem devemos ser de direita, ou de esquerda. O dia que formos de algum lado, deixaremos de ser de Deus. É preciso respeitar a competência do outro, a liberdade do outro em fazer sua opção política. De igual modo é preciso evitar a perseguição alheia por conta de divergência política. É possível ser cristão de direita, assim como é possível ser cristão de esquerda. Se é desejável ou não, isso remete ao gosto, a preferência de cada um. Verdade é também que é mais comum encontrarmos os que são de posicionamento político de centro, ou mesmo de uma social democracia, como é o caso dos países (protestantes) da Escandinávia.
No ambiente eclesiástico não somos de partidos. As facções são obras da carne (Gl.5:20). Na Igreja somos militantes da paz, que uma vez embebida na longanimidade, mansidão, domínio próprio e no amor (Gl.5:21,22), transborda em comunhão, vida e salvação (João 17:21) em nossas comunidades de fé. É primeiramente na vida da Igreja que nossa moderação, como dizia o apóstolo (Fp. 4:5) deve ser conhecida. Que assim seja.